Recordações do Café
Granada (*)
Desci
a Travessa do Pasteleiro e entrei na Rua da Esperança. Atravessei a avenida D.
Carlos I e, para facilitar, desci meia dúzia de degraus, entrei na estreita rua
dos Merca–Tudo e rapidamente cheguei ao Largo Conde Barão, onde os velhos
armazéns fervilhavam de gente que entrava, comprava e saía.
Segui
em frente passando ao lado dos eléctricos que vinham de São Paulo ou de Santos
e cujos guarda-freios faziam tilintar freneticamente as campainhas avisando os
menos atentos que circulavam pela rua para fugir aos passeios estreitos e
irregulares ou a atravessavam descuidadamente.
Rapidamente
cheguei à esplanada do Café Granada, nessa altura ainda com bastante gente
aproveitando o bom tempo, quase fora de época, a pacatez da reentrância do
edifício e a sombra das árvores grandes e frondosas. Procurei uma mesa livre e
sentei-me. Quase sem tempo para pedir o café ouvi uma voz atrás, noutra mesa,
dizendo-me:
-
Oh pá, colega, se quiseres senta-te aqui ao pé de nós.
Claro
que aceitei, era, vim a saber logo a seguir, o Fernando Nabais. Estava com o
seu companheiro de quarto alugado da rua Miguel Lupi, Luís Vieira a quem, vá-se
lá a saber porquê, chamavam também Luís Bagaço (com B grande porque o Luís merece
e o Bagaço também).
E
ali ficámos a saber quem tinha passado e quem tinha “chumbado”; quem tinha de
ir para a tropa ou quem ainda poderia aguentar mais tempo sem ser chamado para
a guerra como castigo por ter reprovado.
E
assim se foi fazendo o grupo do Café Granada: “Oh pá, senta-te aqui ao pé de
nós”.
A
falar no serviço militar, encontrei-me eu, uns tempos depois, tentando explicar
como estava Económicas a um loiraço que se sentou na minha mesa por me
reconhecer das aulas de Económicas. Era o Manel Valente acabado de chegar das
sua guerra colonial e cheio de coragem e de vontade para acabar rapidamente o
curso pois:
-
Eh pá, é João que te chamas não é, quero ver se acabo isto depressa
aproveitando o regime militar dos exames pois não posso passar muito tempo a
viver das poupanças que fiz na tropa.
Outro
Manel, o da tabacaria, aproveitava uma folguita na “freguesia” e vinha
juntar-se à nossa mesa com a tabacaria debaixo de olho. Trazia o tabaco às
mesas, bastava fazer-lhe um sinal que ele já conhecia as marcas que cada um
fumava. O Manel, que também lhe chamávamos Manel Marreco, neste caso sem ser
necessário averiguar porquê, “controlava” e ia saudando quem descia para a cave
para jogar bilhar.
O
Constantino, o nosso dedicado fornecedor de electricidade, garantia a luz no
Café e a iluminação nos bilhares, quase por favor, pois os seus clientes
preferidos eram bem maiores como a Feira Popular, a avenida da Liberdade em dia
de marchas ou o Estádio da Luz mas neste caso apenas a pedido expresso do Manel
Aires.
Ainda
conheci o Manel Aires fardado de militar da Força Aérea, tão orgulhoso da sua
farda e sobretudo do seu chapéu de pala de oficial, quanto, uns anitos a
seguir, do seu livro de Anatomia com o qual fazia pirraça aos estudantes de
livros pequenos de Económicos, ou dos futuros engenheiros Pedro Fidalgo e Luís
Barata ou dos cursantes de Letras como o Necas (“mas isso não é um curso para
meninas, perguntava gozando o Quim “Bocas”).
Do
seu chapéu de oficial até a senhora polícia ficava invejosa, talvez a primeira
mulher polícia em Portugal que frequentava à noite o café Granada. Que honra
para o Granada. Lembram-se?
O
Granada era centro de convívio, era local de estudo e era ponto de partida para
os “copos” e “farras”. O problema principal era o transporte porque só um ou
dois poderiam dispor de carro. O Manel Aires ia buscar o Mercedes do pai e
avisava que tinha lugar para cinco. Refilando mas tolerante acabava por levar
sete com o aviso claro:
-Aqui
à frente comigo, só vai um!
Por
vezes o saudoso Quim “Bocas” acabava por ir buscar o seu carrinho, que nem para
ir para o Diário de Notícias o levava e dava boleia a mais quatro. Como o
depósito estava quase sempre na reserva ele fazia uma pequena colecta para,
justificava-se ele com o seu enorme sentido de humor, não passar pela vergonha
de pedir ao senhor da “bomba” para pôr cinco escudos de gasolina e ele
perguntar-lhe:
-
É para o carro ou para o isqueiro?
E
com mais boleia, menos boleia lá íamos nós para o Alto de Santo Amaro comer
umas belas cadelinhas ou então para Porto Salvo provar uns túbaros de borrego
deliciosos. Mais habitual era subirmos a Calçada do Combro e irmos por volta da
meia-noite, após o fecho do Granada, até à Trindade, nos seus tempos de
cervejaria famosa e popular, beber uma imperiais ou só uma quem não tinha
dinheiro para mais. Havia os abonados que comiam o famoso “meio” bife, havia
quem encomendasse apenas a travessa de batatas fritas e as fosse passando pela
gratuita maionese para saberem melhor e darem a ideia de acompanhamento, havia
quem se entretinha apenas com os tremoços e havia quem conseguia ainda pedir um
croquete no qual, seguindo à risca as regras do Salvador “Babalu”, ia dando
umas pequenas trincadinhas, para durar mais tempo, sempre numa ponta coberta
com mostarda, também gratuita.
Não
sei se por ficarem com a barriga cheia, se por efeito das afrodisíacas mostarda
e maionese, houve dias em que alguém se lembrava de atravessar o Bairro Alto e
ir direito ao Barbarela, bar de homossexuais discreto e raro à época. Para o
que havia de dar a estes ilustres granadinos! O pior é que, a partir de
determinada altura, os “verdadeiros” se punham a andar, mal nos viam a entrar.
Sobretudo desde o dia em que um tal de Morgado ou de Botelho resolveu ir para o
meio da pista dançar e encabeçar um comboio de dançantes gritando
esganiçadamente para os outros:
-
Eu sou a máquina, eu sou a máquina, vocês vão todos atrás de mim.
Claro
que esta última história poderá provocar em alguém que não conheça bem este
grupo, a pergunta excelsa por que razão é um grupo de homens. Ora aí está uma
boa pergunta que eu, escrevinhador escolhido, remeto para todos os ilustres
granadinos.
Eu
sei que víamos a tal mulher polícia; mas ela, de facto, não fazia parte do
grupo e sempre nos olhou com ar de polícia.
É
verdade que por lá passava e sentava-se connosco a Tina, minha vizinha da
Madragoa. Mas era muito, mesmo muito passageiro e nem sei quais eram os mais
incomodados, se ela por ser a única mulher ou nós por sermos tantos homens à volta
duma só mulher.
Também
me lembro que quando, num certo Carnaval, foi organizado um casamento de
Carnaval, fomos obrigados a pedir voluntários homens para fazer de noiva e de
madrinhas.
Enfim
uma outra mulher que lá passava era uma dinamarquesa casada com o nosso colega
de grupo Palma que nem o parecia porque se gabava de não saber cozinhar em
frente a todos nós. E como ainda não dominava o português e trocava quase todos
os femininos com os masculinos, explicava para todos que lá em casa o Palma era
o único cozinheiro, do seguinte modo:
-
Lá em casa, c(u)ozinho é com ele! – querendo dizer que a cozinha era apenas com
o companheiro.
Enfim,
houve uma altura, que o grupo enfim ultrapassou esse bloqueio, quando duas
esbeltas raparigas, surgidas já não sei de onde, quase se integraram no grupo.
Mas o repúdio foi tal que foram quase marginalizadas e ficaram sempre entre o
grupo e não grupo. A tal ponto que o Manel Aires, já na altura fervoroso adepto
do Glorioso e conhecedor do nome de todos os jogadores, decretou:
-
Elas jogam bem pelas laterais e como tal passam a chamar-se Adolfo e Malta da
Silva.
Não
havia mesmo solução!
Tinha
ido apenas beber um café, lembram-se? Posso voltar a casa descansado. Tenho um
excelente grupo de amigos.