quarta-feira, 6 de maio de 2015

Tic-Tac

Como muitos outros “deslocados”, também eu cheguei a Lisboa, de mala na mão, carteira minguada, mas, cheio de sonhos.
Na grande cidade, 17 anos, sózinho, sem ninguém conhecido, sem amarras nem restrições, mas muitos conselhos paternais…
O meu primeiro quarto, alugado, claro, foi no início da Travessa do Pasteleiro, junto à Rua do Quelhas.
Convenientemente localizado, a cem metros da entrada para “Económicas”, permitia evitar a utilização e o custo dos transportes públicos, e as associadas perdas de tempo.
Poderia eu facilmente, se assim o quisesse, estar nas aulas a horas.
A minha “senhoria”, D. Esmeralda de sua graça, era uma senhora para o forte, talvez nos seus quarenta ou cinquenta anos, portanto “velhota”!
Nessa altura, quem tivesse mais de vinte cinco, era “velho”.
O marido, era, ao que sei, “embarcadiço”, e, por isso, não o devo ter visto mais de duas ou três vezes.
O quarto, bastante espaçoso, era num sótão, na parte superior da casa, com acesso semi independente, com passagem apenas pela cozinha.
Muitas vezes recebeu grupos, não para estudar, mas para jogos de cartas, que naturalmente incluíam a lerpa e o “king”.
No meu primeiro dia, lá deixei as malas e fui conhecer a nova escola que, esperava, me viesse a proporcionar um futuro risonho.
Na velha cantina, comprei o cartão de senhas de refeição para um mês, o que provocou um rombo nas minhas magras finanças, mas me deixou descansado relativamente à subsistência em Lisboa, nas semanas seguintes.
Jantei, satisfiz parte da curiosidade relativamente ao ambiente que me esperava no futuro próximo e dirigi-me para os meus novos aposentos, pois havia que desfazer a mala e preparar-me para o primeiro dia de aulas, na manhã seguinte.
Chegado ao quarto, comecei a fazer a apropriação do espaço, com o conteúdo da mala (grande) que trazia, que incluía roupas, artigos de higiene, isto é, pente, pasta e escova de dentes (!), e um despertador, para que não deixasse de ir às aulas, caso não acordasse naturalmente, a horas.
O despertador era mecânico, de corda, com uma campainha que, além de me acordar, incomodaria também os restantes ocupantes da casa que estivessem ainda a dormir.
Os despertadores digitais vieram muito mais tarde…
Por outro lado, este despertador tinha outra particularidade: desde que tivesse corda era bastante sonoro a trabalhar, principalmente à noite, quando os níveis de ruído eram mais baixos.
Era contudo a minha garantia, que acordaria a tempo para as aulas da manhã.
Coloquei o despertador sobre um armário onde guardei as minhas roupas e deitei-me.
Tentei dormir, virei-me para um lado, virei-me para o outro, mas o ruído era constante – tic-tac- tic-tac- tic-tac- tic-tac… e não conseguia adormecer.
Claro que nessa época ouvia um pouco melhor que hoje…
Talvez se eu conseguisse diminuir o ruído…, por que não meter o despertador dentro da mala onde veio a minha bagagem…
Assim fiz e voltei para a cama.
Deitei-me, mais uma vez, volta para um lado, volta para o outro, mas continuava o incomodativo …tic-tac-tic-tac- tic-tac…
Até que tive uma ideia luminosa – abri a mala, retirei o despertador, enrolei-o numa toalha de banho, e voltei a colocá-lo na mala que fechei novamente.
Deitei-me e, finalmente pude adormecer…
Claro que no dia seguinte, as primeiras aulas não tiveram a minha presença, hábito que decidi adoptar e mantive durante muito tempo…
 
 
Jorge Morgado

2 comentários:

  1. Muito bem Morgado.
    Um texto excelente.
    Prosa muito original, de um bom escritor.
    Um história verdadeira muito interessante.

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  2. Artigo notável!
    Mas permitam que fale nessa obra prima que é o relógio. Até é visível a sombra dos ponteiros e o desenho dos números é perfeito. Depois aquelas duas flores em cima em forma de campânula invertida e que demonstram que devia tocar bem alto. Finalmente, a cor... a demonstrar que o nosso amigo Morgadito pensava que, ao chegar ao ISCEF, tinha chegado ao Eldorado.
    Pena que o tivesse escondido na mala impedindo-nos de desfrutar do seu som e companhia...

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