segunda-feira, 27 de julho de 2015


Recordações do Café Granada (*)

 - Vou ali abaixo beber um café e já volto – disse eu para o meu pai em jeito de pequeno aviso.

Desci a Travessa do Pasteleiro e entrei na Rua da Esperança. Atravessei a avenida D. Carlos I e, para facilitar, desci meia dúzia de degraus, entrei na estreita rua dos Merca–Tudo e rapidamente cheguei ao Largo Conde Barão, onde os velhos armazéns fervilhavam de gente que entrava, comprava e saía.

Segui em frente passando ao lado dos eléctricos que vinham de São Paulo ou de Santos e cujos guarda-freios faziam tilintar freneticamente as campainhas avisando os menos atentos que circulavam pela rua para fugir aos passeios estreitos e irregulares ou a atravessavam descuidadamente.

Rapidamente cheguei à esplanada do Café Granada, nessa altura ainda com bastante gente aproveitando o bom tempo, quase fora de época, a pacatez da reentrância do edifício e a sombra das árvores grandes e frondosas. Procurei uma mesa livre e sentei-me. Quase sem tempo para pedir o café ouvi uma voz atrás, noutra mesa, dizendo-me:

- Oh pá, colega, se quiseres senta-te aqui ao pé de nós.

Claro que aceitei, era, vim a saber logo a seguir, o Fernando Nabais. Estava com o seu companheiro de quarto alugado da rua Miguel Lupi, Luís Vieira a quem, vá-se lá a saber porquê, chamavam também Luís Bagaço (com B grande porque o Luís merece e o Bagaço também).

E ali ficámos a saber quem tinha passado e quem tinha “chumbado”; quem tinha de ir para a tropa ou quem ainda poderia aguentar mais tempo sem ser chamado para a guerra como castigo por ter reprovado.

E assim se foi fazendo o grupo do Café Granada: “Oh pá, senta-te aqui ao pé de nós”.

A falar no serviço militar, encontrei-me eu, uns tempos depois, tentando explicar como estava Económicas a um loiraço que se sentou na minha mesa por me reconhecer das aulas de Económicas. Era o Manel Valente acabado de chegar das sua guerra colonial e cheio de coragem e de vontade para acabar rapidamente o curso pois:

- Eh pá, é João que te chamas não é, quero ver se acabo isto depressa aproveitando o regime militar dos exames pois não posso passar muito tempo a viver das poupanças que fiz na tropa.

Outro Manel, o da tabacaria, aproveitava uma folguita na “freguesia” e vinha juntar-se à nossa mesa com a tabacaria debaixo de olho. Trazia o tabaco às mesas, bastava fazer-lhe um sinal que ele já conhecia as marcas que cada um fumava. O Manel, que também lhe chamávamos Manel Marreco, neste caso sem ser necessário averiguar porquê, “controlava” e ia saudando quem descia para a cave para jogar bilhar.

O Constantino, o nosso dedicado fornecedor de electricidade, garantia a luz no Café e a iluminação nos bilhares, quase por favor, pois os seus clientes preferidos eram bem maiores como a Feira Popular, a avenida da Liberdade em dia de marchas ou o Estádio da Luz mas neste caso apenas a pedido expresso do Manel Aires.

Ainda conheci o Manel Aires fardado de militar da Força Aérea, tão orgulhoso da sua farda e sobretudo do seu chapéu de pala de oficial, quanto, uns anitos a seguir, do seu livro de Anatomia com o qual fazia pirraça aos estudantes de livros pequenos de Económicos, ou dos futuros engenheiros Pedro Fidalgo e Luís Barata ou dos cursantes de Letras como o Necas (“mas isso não é um curso para meninas, perguntava gozando o Quim “Bocas”).

Do seu chapéu de oficial até a senhora polícia ficava invejosa, talvez a primeira mulher polícia em Portugal que frequentava à noite o café Granada. Que honra para o Granada. Lembram-se?

O Granada era centro de convívio, era local de estudo e era ponto de partida para os “copos” e “farras”. O problema principal era o transporte porque só um ou dois poderiam dispor de carro. O Manel Aires ia buscar o Mercedes do pai e avisava que tinha lugar para cinco. Refilando mas tolerante acabava por levar sete com o aviso claro:

-Aqui à frente comigo, só vai um!

Por vezes o saudoso Quim “Bocas” acabava por ir buscar o seu carrinho, que nem para ir para o Diário de Notícias o levava e dava boleia a mais quatro. Como o depósito estava quase sempre na reserva ele fazia uma pequena colecta para, justificava-se ele com o seu enorme sentido de humor, não passar pela vergonha de pedir ao senhor da “bomba” para pôr cinco escudos de gasolina e ele perguntar-lhe:

- É para o carro ou para o isqueiro?

E com mais boleia, menos boleia lá íamos nós para o Alto de Santo Amaro comer umas belas cadelinhas ou então para Porto Salvo provar uns túbaros de borrego deliciosos. Mais habitual era subirmos a Calçada do Combro e irmos por volta da meia-noite, após o fecho do Granada, até à Trindade, nos seus tempos de cervejaria famosa e popular, beber uma imperiais ou só uma quem não tinha dinheiro para mais. Havia os abonados que comiam o famoso “meio” bife, havia quem encomendasse apenas a travessa de batatas fritas e as fosse passando pela gratuita maionese para saberem melhor e darem a ideia de acompanhamento, havia quem se entretinha apenas com os tremoços e havia quem conseguia ainda pedir um croquete no qual, seguindo à risca as regras do Salvador “Babalu”, ia dando umas pequenas trincadinhas, para durar mais tempo, sempre numa ponta coberta com mostarda, também gratuita.

Não sei se por ficarem com a barriga cheia, se por efeito das afrodisíacas mostarda e maionese, houve dias em que alguém se lembrava de atravessar o Bairro Alto e ir direito ao Barbarela, bar de homossexuais discreto e raro à época. Para o que havia de dar a estes ilustres granadinos! O pior é que, a partir de determinada altura, os “verdadeiros” se punham a andar, mal nos viam a entrar. Sobretudo desde o dia em que um tal de Morgado ou de Botelho resolveu ir para o meio da pista dançar e encabeçar um comboio de dançantes gritando esganiçadamente para os outros:

- Eu sou a máquina, eu sou a máquina, vocês vão todos atrás de mim.

Claro que esta última história poderá provocar em alguém que não conheça bem este grupo, a pergunta excelsa por que razão é um grupo de homens. Ora aí está uma boa pergunta que eu, escrevinhador escolhido, remeto para todos os ilustres granadinos.

Eu sei que víamos a tal mulher polícia; mas ela, de facto, não fazia parte do grupo e sempre nos olhou com ar de polícia.

É verdade que por lá passava e sentava-se connosco a Tina, minha vizinha da Madragoa. Mas era muito, mesmo muito passageiro e nem sei quais eram os mais incomodados, se ela por ser a única mulher ou nós por sermos tantos homens à volta duma só mulher.

Também me lembro que quando, num certo Carnaval, foi organizado um casamento de Carnaval, fomos obrigados a pedir voluntários homens para fazer de noiva e de madrinhas.

Enfim uma outra mulher que lá passava era uma dinamarquesa casada com o nosso colega de grupo Palma que nem o parecia porque se gabava de não saber cozinhar em frente a todos nós. E como ainda não dominava o português e trocava quase todos os femininos com os masculinos, explicava para todos que lá em casa o Palma era o único cozinheiro, do seguinte modo:

- Lá em casa, c(u)ozinho é com ele! – querendo dizer que a cozinha era apenas com o companheiro.

Enfim, houve uma altura, que o grupo enfim ultrapassou esse bloqueio, quando duas esbeltas raparigas, surgidas já não sei de onde, quase se integraram no grupo. Mas o repúdio foi tal que foram quase marginalizadas e ficaram sempre entre o grupo e não grupo. A tal ponto que o Manel Aires, já na altura fervoroso adepto do Glorioso e conhecedor do nome de todos os jogadores, decretou:

- Elas jogam bem pelas laterais e como tal passam a chamar-se Adolfo e Malta da Silva.

Não havia mesmo solução!

Tinha ido apenas beber um café, lembram-se? Posso voltar a casa descansado. Tenho um excelente grupo de amigos.

 João de Sousa, 29 de Maio 2015
(*) Texto escrito por ter sido nomeado pelo Grupo para escrever um texto recordatório.